Cristina Reis é um nome indissociável do Teatro da Cornucópia, a companhia fundada em 1973 por Luís Miguel Cintra e Jorge Silva Melo. É logo em 1975 que Cristina Reis inicia a sua colaboração com ambos os fundadores, começando um percurso de mais de 40 anos como cenógrafa, figurinista e designer gráfica da Cornucópia. A partir de 1980, após a saída de Jorge Silva Melo, Cristina Reis assume também a direção do Teatro, juntamente com Luís Miguel Cintra. Neste “projeto de vida”, Cristina Reis desenha a quase totalidade dos cenários, dos adereços de palco e dos figurinos, sendo também responsável pela imagem gráfica de cada peça, desenhando os catálogos, os programas e os outros suportes de comunicação da Cornucópia nos mais de 120 espetáculos levados à cena, seja no emblemático Teatro do Bairro Alto ou noutras instituições do país, como o Teatro Nacional D. Maria II, a Culturgest, o Teatro São Luiz, o Teatro Rivoli ou o Teatro Nacional de São Carlos. É reconhecida a importância que os seus espaços, roupagens, adereços e imagens desempenharam na tradução formal e visual de cada dramaturgia do encenador Luís Miguel Cintra, e o papel decisivo que desempenharam na construção da identidade da companhia, tornando-se mesmo uma marca distintiva da Cornucópia. Para além do teatro, Cristina Reis idealiza também cenários e figurinos para cinema e ópera. Entre os vários prémios que recebeu, destaca-se o Prémio ACARTE/Maria Madalena de Azeredo Perdigão (1997); o Prémio Almada/Teatro pelo conjunto da sua obra, atribuído pelo Ministério da Cultura (1999); o Prémio Nacional de Design/ Centro Português de Design (2000); ou o Prémio Gulbenkian Artes (2010).
Antes de colaborar com o Teatro da Cornucópia, Cristina Reis fez parte da primeira geração de designers portugueses com formação em design. Depois de terminado o curso de pintura da Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, Cristina Reis partiu em 1966 para Londres, como bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian, concluindo o curso de Arte e Design Gráfico, em 1970, no Ravensbourne College of Art and Design. Como ela, formaram-se em Londres, Alda Rosa, José Brandão, Sallete Brandão, Moura-George, Jorge Pacheco, entre outros.
Cristina Reis aprendeu e colaborou com os pioneiros do design em Portugal. Primeiro, com seu tio, o arquiteto e pintor Frederico George, grande defensor da afirmação do design como disciplina autónoma. E em segundo, trabalha com Daciano da Costa no seu ateliê entre 1960 e 1966, colaborando em vários projetos de desenho de interiores. Cristina Reis participou ainda ativamente na organização da 1ª e da 2ª Exposição de Design Português, respetivamente em 1971 e 1973. Colaborou no levantamento e organização da emblemática exposição de 1971, em conjunto com José Maria Cruz de Carvalho, João Constantino, Eduardo Sérgio e José Santa Bárbara, com orientação de Maria Helena Matos e, em colaboração com Alda Rosa, elaborou ainda o respetivo catálogo, objeto de referência pelo design gráfico. Em 1973, colaborou, mais uma vez, sob a direção de Alda Rosa, na conceção gráfica do catálogo da 2ª Exposição, mostra que teve projeto e direção de António Sena da Silva e da Cooperativa PRAXIS, liderada por Tomás de Figueiredo. Ainda antes da sua colaboração com o Teatro da Cornucópia, Cristina Reis integrou, entre 1974 e 1975, a cooperativa DEZ, que formou, entre outros, com José Manuel Ramada Leite, Rita Castro, Francisco Mapril, Armindo Robalo, Sena da Silva e Martins Barata, desenhando várias exposições para a indústria e para representações oficiais portuguesas organizadas pelo Fundo de Fomento de Exportação (atual AICEP).
Apesar de ter sido várias vezes distinguida, a vastíssima obra de Cristina Reis nunca foi devidamente estudada, analisada e divulgada de forma coesa e integral, pela perspetiva da sua disciplina de formação, o design. Importa fazer um levantamento dos desenhos, maquetas e outros registos existentes para depois se proceder a uma leitura comparativa e cuidadosa das suas arquiteturas de cena, dos seus figurinos e dos seus cartazes, procurando caracterizar a sua linguagem, estilo e gramática. Foi com esta intenção que o MUDE recebeu, em 2017/2018, o espólio que reúne muitos dos acessórios e adereços de palco que fizeram parte da história da Cornucópia. De igual modo, o MUDE recebeu também uma coleção documental constituída pelas maquetas originais dos espetáculos, pelos cartazes, programas e outro material impresso. É este espólio, exemplo do trabalho criativo, experimental e inventivo de Cristina Reis, que se encontra à guarda do MUDE, em processo de doação, pela sua representatividade e estreita ligação entre o design e as artes de palco, em particular, o teatro. A incorporação deste espólio no MUDE assume ainda uma redobrada importância, uma vez que Cristina Reis foi, durante a década de 1970, uma ativa participante no movimento de afirmação disciplinar e institucional do design.
A coleção de programas de teatro é demonstrativa do valor que a Cornucópia, sempre entendida como teatro de reflexão, lhes atribuía enquanto material de estudo e reflexão do espetador. Cada programa implicava um vasto trabalho de investigação e reunia informação necessária sobre o texto original, o seu autor, contexto histórico ou anteriores encenações, mas também sobre a filosofia que presidia à dramaturgia, encenação e cenografia da Cornucópia. O conjunto dos programas, cartazes e outros materiais de divulgação é assim uma fonte de informação importante, pois testemunha a forma como cada suporte era idealizado de modo a gerar uma sólida unidade com a concepção plástica de cada espetáculo.
Por outro lado, os figurinos, as maquetas e os adereços de palco provam como Cristina Reis deu corpo e espaço, com particular mestria e sensibilidade, a cada dramaturgia de Luís Miguel Cintra. Ano após ano, Cristina Reis foi reinventando a caixa vazia do Teatro da Cornucópia, recuperando uma série de práticas ancestrais de teatralização e repensando, em cada novo espetáculo, a relação palco-plateia/ ator-público/ corpo-vestes/ imagem-palavra/ dramaturgia-cenografia. Cristina Reis projeta composições inventivas e aparentemente simples, onde valoriza cada elemento cénico, construído intencionalmente de forma artesanal e manual, criando um “alfabeto” de objetos performativos, de valor icónico e força plástica, que vão reaparecendo, de forma surpreendente, em diferentes cenografias, procurando gerar no espetador uma vivência concreta, presencial e emotiva.
Bárbara Coutinho
Maio 2020
+ leituras
Teatro da Cornucópia: Espectáculos de 1973 a 2001. Lisboa: Teatro da Cornucópia.
CINTRA, Luís Miguel (2000). “Introdução a Cristina Reis”, GRAIS, Paula Gris (coord.). Prémios Nacionais de Design 2000: Carreira. Lisboa: Centro Português de Design.
COUTINHO, Bárbara e SOUTO, Maria Helena (conceito e coord. ed.) (2017). Design em Portugal (1960-1974). Ensaio para um arquivo. Lisboa: CML-MUDE.
COUTINHO, Bárbara (coord. edit.) (2009). Sena da Silva. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
MACHADO, Carlos Alberto (1999), Teatro da Cornucópia: As regras do jogo. Lisboa: Frenesi.
REIS, Cristina (org.) (2016). Teatro da Cornucópia: Espectáculos de 2002 a 2016. Lisboa: Teatro da Cornucópia.
SOUTO, Helena (coord.). Design em Portugal (1960-1974): acções, intervenientes e repercussões do Núcleo de Arte e Arquitectura Industrial e do Núcleo de Design Industrial do Instituto Nacional de Investigação Industrial (I.N.I.I.). [disponível em: http://unidcom.iade.pt/designportugal/].