Abrandar o Tempo é, no contexto museológico, um ideal continuamente procurado, mas também é um apelo à observação atenta, à contemplação e à reflexão. Lembrando a definição do ICOM, cumpre ao museu adquirir, estudar, conservar e divulgar o património material e imaterial da humanidade, garantindo a sua estabilidade e longevidade. Partindo destas premissas elementares, é da responsabilidade do museu recolher evidências materiais de reconhecido valor e manter este acervo como recurso disponível no presente e para o futuro. O museu é, pois, o lugar onde são mantidas as condições para a conservação e o estudo dessa materialidade, garantindo assim a sua significação enquanto fenómeno da cultura material de um determinado tempo. Deste modo, quando falamos no museu do ponto de vista da conservação, pensamos necessariamente em memória, em arquivo, em autenticidade e em tempo longo. Pensamos também numa ação que busca contrariar os efeitos naturais do tempo na materialidade dos objetos.
A conservação torna-se mais complexa quando a associamos às práticas artísticas contemporâneas (da segunda metade do século XX até à atualidade), uma vez que estas privilegiam o efémero, a performatividade e a participação, conduzindo a uma progressiva desmaterialização do objeto artístico. Em relação aos objetos utilitários, temos de adicionar mais uma especificidade. Não sendo, na sua maioria, pensados como objetos únicos, a verdade é que adquirem uma singularidade quando ingressam no acervo do museu. A sua preservação implica uma contextualização bem documentada, sobretudo se atendermos à natureza projetual do design. Artistas e designers pesquisam e experimentam novos materiais, explorando intencionalmente a alterabilidade de cada matéria utilizada. Tudo isto desafia os conceitos de autenticidade, originalidade e durabilidade, impondo repensar a conservação e restauro, em termos práticos e éticos.
Abrandar o Tempo aborda a identidade mutante dos objetos através de uma seleção de 15 peças do acervo do MUDE. Convidamos a explorar os três núcleos temáticos.
Performance e Durabilidade
Neste núcleo, as peças procuram estimular a consciência da transitoriedade do tempo, da contínua instabilidade do instante presente e da inevitável vida evolutiva das formas e dos materiais. São peças que problematizam o passageiro e o duradouro; a ação e a sua memória; a performatividade que têm inerente e a finitude da própria peça; o tangível e o intangível. Por outro lado, podem também fazer-nos refletir sobre a alterabilidade, pois revelam-se como objetos em transição, objetos que documentam e que manifestam, em cada momento, o seu estado original e a sua presente temporalidade.
Na peça Painting with Rembrandt #3 de Fernando Brízio observamos a combinação da perenidade conferida à cerâmica pelo fogo com a deliberada transitoriedade de estado físico da cor, resultante da ação determinada do homem, que define o início do processo. É a vivência do tempo do escorrer das tintas e a expectativa do seu resultado que permitem a perceção plena da peça. No final do processo, a peça perde a sua integridade inicial. A coleção de peças ESA de Gonçalo Campos explora também, de forma diferente, a composição da forma pela ação do homem, aludindo ao potencial da geometria e recuperando a ancestralidade do gesto de amarrar e desamarrar.
Tatuado na Pele e Modelo Anatómico evidenciam a amplitude da joalharia contemporânea e debruçam-se, de diferentes maneiras, sobre a sua coexistência com o corpo. Diana Silva tatua numa superfície de látex, como se de uma pele se tratasse, várias formas usáveis, como colares e pulseiras. A utilização destes objetos de adorno implica, porém, o corte do látex e a sua desintegração enquanto superfície. Por sua vez, Olga Noronha com a sua joalharia medicamente prescrita traz outra perspetiva de inscrição no corpo – a tatuagem já não é realizada na pele, mas é gravada nas próteses médicas, entendidas como jóias intra-corporais.
A peça Robe de Marriage de Filomeno de Sousa oferece-nos um colar que remete para a memória de um bolo de noiva e para os votos proferidos no ritual do casamento. A jóia como desejo do eterno contrasta com a inevitabilidade do finito pela representação do que é comestível. A peça expõe a inevitabilidade da passagem do tempo, nomeadamente na alteração de cor das esferas de açúcar usadas por Filomeno como matéria, criando um novo estrato na perceção da peça.
Múltiplo e Singular
No binómio Múltiplo e Singular encontram-se reunidas peças que facilitam uma reflexão sobre o espectro que existe entre a lógica de mercado e a perspetiva experimental, traduzida em objetos únicos, edições limitadas e produções em série. Independentemente do modo e da quantidade de produção, as peças adquirem uma singularidade quando ingressam no acervo do museu.
O cabide ou a escultura funcional Cactus de Drocco & Mello é icónica da estética pop e reporta ao momento de glória do uso dos polímeros. Diante da sua acelerada alterabilidade, a existência material é garantida pelos múltiplos que continuam a ser produzidos pela Gufram como um meio de transpor a finitude resultante da passagem do tempo. Este facto não retira o valor da peça “instável” existente no acervo do MUDE, pelo contrário. O estado atual de conservação, sem intervenção válida conhecida, é assumido como forma de discurso temporal, colocando o observador perante a duração evolutiva e mutável da peça. Já na série de Ross Lovegrove, Air One e Air Two, a tecnologia de moldagem da espuma de polipropileno confere resistência, densidade, organicidade e uma inesperada leveza a cada peça.
Num discurso mais experimentalista, destacam-se dois projetos da Coleção Terra da Vicara Design: Cerne, de Samuel Reis, que utiliza a narrativa inerente da matéria-prima principal – tronco da árvore – criando múltiplos de características singulares; e Cimento, de Jorge Carreira, que explora as fronteiras preestabelecidas no uso dos materiais, ao aplicar o cimento à escala e mobilidade das mãos. Na peça de Samuel Reis, o cerne substitui o tradicional molde e configura um vazio no qual é soprado o vidro incandescente. O vazio torna-se presença em vidro, registando toda a textura das marcas do seu molde natural. Na peça de Jorge Carreira, tem uma particular relevância a forma como a ideia inesperada de usar um material de construção para fazer uma jarra faz com que o visitante tenha uma nova perspetiva sobre a matéria e a tipologia do objeto.
Neste núcleo, assume particular significado a peça única Naked Confort de John Angelo Benson, criada a partir de uma cadeira constantemente reeditada, reproduzida e copiada - a icónica cadeira do movimento moderno, LC2 Petit Confort Armchair, desenhada, em 1928, por Le Corbusier, Pierre Jeanneret e Charlotte Perriand. Benson mantém a matéria (aço tubular cromado) e a força evocativa da forma cúbica e compacta da cadeira original, mas substitui o couro por palha.
Ideia e Matéria
Tomámos como exemplo a cadeira, objeto central da nossa cultura material ocidental, e reunimos um conjunto de propostas que mostram como esta tipologia tem sido constantemente reinterpretada. E, ao sê-lo, percebemos como vai enriquecendo significativamente a nossa memória coletiva sobre esse objeto comum, a cadeira, contribuindo também para uma redefinição constante da própria cultura material. Algumas destas cadeiras, amplamente reproduzidas, podem ser vistas e analisadas através da imagem, mas a nossa perceção da relação entre a ideia e a matéria requer a experiência física, o sentido háptico, a relação de escala e de peso. É também através da duração do olhar que podemos entender o tempo do processo, o tempo do momento da invenção, da escolha das matérias, da concretização formal.
Em comum, todas as cadeiras geram uma surpresa pela sua inesperada materialidade, algumas suscitam mesmo uma desconfiança por projetarmos um sentimento de desconforto ou falta de estabilidade.
Etruscan de Danny Lane é exemplo paradoxal pela ideia de usar o vidro como matéria para assento e de definir as pernas de aço em desequilíbrio. Já a icónica poltrona insuflável Blow aproxima-se da proposta de Danny Lane por explorar a transparência como matéria plástica, mas distancia-se daquela pela sua versatilidade, informalidade, leveza e flexibilidade. Representativa do espírito pop, esta última revelou rapidamente a sua vulnerabilidade devido à perda de resistência nas juntas, à alteração de cor e à perda de transparência, o que comprometia a ideia original.
Com as propostas de Eric Houseknecht, Glen Thomas e Steven Gheorghiu-Currie, e Frank O. Gehry transpõem-se para o design materiais habitualmente usados em outros contextos. Falamos concretamente de plástico de bolhas, habitualmente utilizado para embalagens; de betão e aço, matérias estruturantes da arquitetura moderna do pós-guerra; e de cartão alveolar aglomerado, que veio demonstrar a vantagem da manipulação não-convencional de materiais comuns. Estas transferências provocam uma profunda alteração na nossa perceção da forma e da definição de cadeira.
+ Leituras
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